Para os que creem no excepcionalismo econômico da América, i.e., no seu condão de baixar a inflação sem reduzir a taxa de crescimento real do PIB, o que facultaria ao Federal Reserve (Fed) afrouxar em breve a política monetária, as notícias no fim de abril foram exasperantes. Segundo dados preliminares, o produto interno bruto cresceu à taxa anualizada de 1,6% no primeiro trimestre, um tombo frente aos três meses precedentes (3,4%). Uma métrica-chave de pressões inflacionárias subjacentes, o núcleo do índice de preços das despesas de consumo pessoal (PCE), subiu mais do que o esperado: 3,7% (ele tinha caído para o ritmo de 2% a.a. nos seis meses anteriores). Não surpreende que os mercados futuros agora vislumbrem em 2024apenas um corte na taxa dos Fed funds, hoje em 5,3% a.a., muito menos que os quase seis esperados no começo de janeiro. O baque nos títulos do Tesouro dos EUA puxou a estrutura a termos dos juros para as máximas do ano.
Uma desinflação tortuosa, aliada a expectativas demasiado otimistas, explica os dissabores do mercado. Diferente de outras grandes economias que iniciaram ciclo de aperto monetário junto com ajuste orçamentário depois da pandemia, a taxa dos Fed funds subiu nos EUA, mas a política fiscal tem sido bem errática. Tão logo indicadores antecedentes de demanda, como as vendas finais reais a compradores domésticos privados, emitiram alertas de recessão e a economia acusou dois trimestres seguidos de contração real do PIB, aumentaram substancialmente as necessidades de financiamento do setor público em 2022 e, em menor ritmo, durante a maior parte de 2023 (Gráfico I). Para comparar, o déficit em 12 meses dos governos na União Europeia em 2024 é de 3,5% do PIB, enquanto nos EUA ele é estimado em 6% do PIB.
Embora choques fiscais expansionistas energizem a absorção doméstica, tipicamente aumentando o dispêndio agregado e reforçando narrativas de economia resiliente, não melhoram as coisas para os IPCs. Ao contrário, aceleram a taxa de crescimento do nível geral de preços, tudo o mais constante, e isso também vale para as nações mais ricas. Estudos recentes estimam que uma piora de um desvio padrão no resultado do orçamento consolidado como proporção do PIB gera aumento persistente da inflação ao consumidor nas economias avançadas: de 0,4 ponto percentual no primeiro ano e de mais 0,4 ponto percentual no médio prazo (o impacto nos países em desenvolvimento é maior).1 Em vista disso, a desinflação nos EUA ao longo dos últimos dois anos foi muito provavelmente efeito de alguma outra coisa.
Devido às políticas econômicas contraditórias nos EUA, um aperto monetário combinado com expansão fiscal, é razoável crer que parte substancial das taxas de inflação decrescentes registadas até ao início deste ano naquele país resultou de fatores externos. Decerto uma das forças deflacionárias globais mais importantes é a variação ano-contra-ano do índice de preços ao produtor (IPP) da China, que entrou novamente em território negativo após 20 meses de fortes aumentos (Gráfico II). Por conseguinte, parte significativa dos produtos industrializados que circulam no mundo está cada vez mais barata. Quanto às commodities, a deflação acabou, porém não mais exercem pressão altista sobre o custo de vida, com exceção dos custos de energia (que subiram em resposta a choques geopolíticos adversos no Oriente Médio). Neste estágio, um aperto fiscal na América seria a ação mais eficaz para ajudar a reduzir a variação dos IPCs devido ao seu impacto deflacionário sobre os principais itens não comercializáveis, como os serviços. No entanto, tal cenário é assaz irrealista, à medida que se aproximam as eleições presidenciais de novembro, de alta octanagem e repletas de paixão e fúria.
Portanto o que deve acontecer agora nos EUA é desinflação mais lenta que na Europa e China, mas mais próxima da América Latina (Gráfico III). Em um mundo de globalização fragmentada, é um resultado muito plausível. É claro que isso significa taxas de juro mais elevadas por mais tempo na América, uma perspectiva que já não afronta o consenso do mercado. Decerto traz mais sofrimento para negócios que dependem muito de alavancagem financeira, como os imobiliários ou de private equity, e acelerará a consolidação bancária, à medida que bancos regionais menores perdem depósitos para concorrentes maiores e se tornam alvos de aquisições. Além disso, a vida não será melhor para nações pobres que enfrentam crises de dívida externa. Esses processos já estão em curso, porém, e não importam risco sistêmico para a economia global.
A rara combinação de taxas de juro de curto prazo relativamente altas, elevada necessidade de financiamento público, mercado acionário em êxtase e menor risco geopolítico frente a outras geografias resulta em fluxos líquidos de capital para a maior economia do mundo, bem como em posições compradas em dólares dos EUA. Daí resulta essa moeda estar em níveis de sobrevalorização inéditos desde o início dos anos 2000. Mais perturbador é notar que a norma global tem sido desvios acentuados dos valores estimados de paridade do poder de compra nas duas direções (Gráfico IV). O fato de o iene japonês estar subvalorizado em ordem de grandeza análoga a do peso argentino, embora a taxa de inflação ao consumidor no primeiro país ser de 2,7% e de 288% no segundo, é simplesmente bizarro.
A correção de desalinhamentos sérios de taxas de câmbio pode ser um negócio ruidoso. Quando a Fed começar a cortar o juro básico, provavelmente desvalorizará o dólar dos EUA e desencadeará episódios de overshooting de moedas pelo globo, um fenômeno bem documentado que resulta do fato de os mercados cambiais serem altamente sensíveis a mudanças de política monetária, enquanto os preços dos bens são mais lentos em reagir.2 Uma revalorização das taxas de câmbio em regiões cujas moedas estão em geral subvalorizadas (América Latina, por exemplo) deverá então ocorrer.
1Cevik, S. & Miryugin, F. (2023). “It’s Never Different: Fiscal Policy Shocks and Inflation” WP/23/98, International Monetary Fund, May.
2 A referência fundamental é Dornbusch, R., (1976). “Expectations and exchange rate dynamics”. Journal of Political Economy 84, pp. 1161-1176. For a recent assessment of this subject, see Bjørnland, H. C. (2009). “Monetary policy and exchange rate overshooting: Dornbusch was right after all”. Journal of International Economics, 79(1), pp. 64-77.
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